Uma fonte documental portuguesa geralmente negligenciada por genealogistas, sejam estes amadores ou profissionais, são os pedidos de bilhete de identidade. Entre os vários motivos que poderão explicar uma certa indiferença face a esta fonte, destacamos dois: 1. Até há bem poucos anos, esta fonte era de difícil acesso e, também por isso, era desconhecida de muitos genealogistas. 2. Trata-se de uma fonte para o século XX, após a Implantação da República, sugerindo a quem pesquisa que só terá interesse para indivíduos ainda vivos ou que faleceram nos últimos cinquenta anos. Em suma, subsiste ainda a crença generalizada de que esta fonte não é muito relevante para recuar no tempo e para preencher a árvore genealógica. Mas será mesmo assim? Muitos dos pedidos de bilhete identidade em Portugal poderão ter sido destruídos e, entre os que seguramente não o foram, haverá muitos por catalogar. Mesmo os pedidos de bilhete de identidade que estão já catalogados nem sempre ficam suficientemente "visíveis" quando pesquisamos, sobretudo se os livros não estiverem "online". Porém, progressivamente estes pedidos de bilhete de identidade vão sendo catalogados pelos arquivos públicos e alguns dos mais antigos até já estão indexados, de modo que podemos pesquisar com um nome que nos interessa e termos uma agradável surpresa. Ainda assim, há um certo desconhecimento sobre as virtualidades desta fonte documental e, por isso, decidimos levantar um pouco do véu, explicando algumas das suas grandes vantagens. Aquele retrato que falta Em Portugal, os pedidos de bilhete de identidade começam a ser processados em 1914 pelos Governos Civis dos distritos. Nessa altura, a fotografia estava generalizada no país e mesmo pessoas de mais modestos recursos guardariam meia dúzia de retratos em casa. Porém, há quem tenha o azar de pertencer a uma família em que essas fotos foram destruídas ou passaram a outros ramos com os quais não têm contacto. Assim, os pedidos de bilhete de identidade podem conter aquele retrato que nos falta do nosso bisavô, trisavô, em alguns casos tetravô - se considerarmos que vários destes pedidos de bilhete de identidade estão em nome de pessoas que nasceram em 1870s, em 1860s, ou até antes. Encontrámos já o caso de uma nascida em 1833 que foi retratada em 1914. Retratos da família Muitos dos pedidos de bilhete de identidade eram feitos em conjunto, sendo comum encontrarmos pedidos de marido e mulher. No caso de crianças, é habitual que haja logo à frente o pedido de bilhete de identidade de um irmão ou de um dos progenitores. Ou seja, encontrarmos o pedido de bilhete de identidade de um antepassado pode dar-nos acesso imediato a outros antepassados, ou colaterais, e vice-versa. Um útil ponto de partida Os pedidos de bilhete de identidade podem ser um ponto de partida interessante para quem esteja com dificuldade em saber qual a paróquia onde começar a pesquisar baptismos anteriores a 1911. Isto porque cada pedido regista a filiação, a naturalidade, a idade, e a data de nascimento. O tempo que perdermos a pesquisar os pedidos de bilhete de identidade pode compensar o tempo que pouparemos em buscas infrutíferas quando não sabemos onde e/ou para quando pesquisar os registos de baptismo. Outras vantagens Os pedidos de bilhete de identidade contêm informações que não estão disponíveis em outras fontes, algumas das quais de grande interesse. Referimo-nos sobretudo aos dados biométricos. As impressões digitais de todos os dedos podem ser, talvez, uma mera curiosidade. Contudo, a altura, a cor dos olhos e do cabelo, o tom de pele, a descrição de eventuais sinais no corpo (como sardas, verrugas, cicatrizes, e onde se situavam), outras indicações como o estrabismo; tudo isto são já informações interessantes que permitem conhecer melhor os nossos antepassados. Acresce que os pedidos de bilhete de identidade mais antigos (de 1914 e dos anos seguintes) contêm fotos de frente e de perfil. Ora, fotos de perfil dessa época geralmente não se encontram em espólios familiares e dão-nos uma perspectiva mais exacta de como eram os nossos antepassados. Fotos tiradas de frente por vezes não nos dizem como era a pessoa de perfil e até nos podem induzir em erro. Se com o retrato de um antepassado nosso tirado de frente podemos concluir que se parece bastante com um certo tio ainda vivo, tendo o retrato desse mesmo antepassado tirado de perfil podemos encontrar semelhanças ainda mais inusitadas com outros familiares nossos. Os contras Os mais antigos pedidos de bilhete de identidade, de 1914 e dos anos seguintes, eram geralmente feitos por quem ia viajar. Abrangem pessoas de todos os estratos sociais, pois incluem os muito abastados, mas também os muito humildes que pensavam, por exemplo, em emigrar. Porém, para essa época os pedidos de bilhete de identidade não são uma fonte generalizada e, como eram processados ao nível distrital, podem misturar indivíduos de vários concelhos num livro só. Se os arquivos que detêm esta fonte documental não os indexarem um por um, a busca pode ser longa e infrutífera. Já os pedidos de bilhete de identidade da década de 1930, apesar de serem menos interessantes em termos de dados biométricos (não contendo, por exemplo, fotos de perfil), têm a vantagem de estarem organizados por concelhos, correspondendo às respectivas conservatórias de registo civil. É claro que, mesmo num determinado concelho, é muito difícil sabermos de antemão em que ano é que alguém pediu bilhete de identidade. Podem ser encontrados pedidos de bilhete de identidade em todos os arquivos distritais e regionais, e ainda na Torre do Tombo. Uma progressiva indexação desta fonte documental torná-la-á cada vez mais útil, abrindo novas portas para a pesquisa genealógica. E os bilhetes de identidade propriamente ditos, onde estão? Uma coisa é o pedido de bilhete de identidade; outra é o bilhete de identidade em si. Ora, os pedidos de bilhete de identidade estão ordenados em conjuntos documentais coerentes e incluem mais informação do que os bilhetes de identidade em si. Por outro lado, os bilhetes de identidade eram usados durante o período de validade e depois poderiam ter destinos muito diferentes, tornando mais difícil encontrá-los hoje em dia: uns podem estar simplesmente perdidos numa gaveta lá de casa; outros foram há muito destruídos, quer pelos próprios portadores (acidentalmente ou não), quer aquando de um novo pedido de bilhete de identidade. O tribunal foi outro destino habitual dos bilhetes de identidade caducados: vários acabaram por ficar anexados a processos relacionados com heranças, nomeadamente nos casos em que foram suscitadas dúvidas sobre alguma assinatura do falecido. Algumas dicas
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Nota de Francisco Queiroz originalmente publicada em 11 de Agosto de 2018 na página do Facebook do "Genealogia sem segredos" «Em documentos anteriores ao século XIX, quando determinado indivíduo é dado como "assistente" em certa localidade, significa que assistia à missa nessa localidade. Consoante o tipo de documento, esta expressão pode também sugerir residência a título temporário, ou então a fixação recente de residência na localidade em causa.» QUEIROZ, Francisco / MOSCATEL, Cristina - Descubra as suas Origens, p. 240. A semana passada, num grupo de Genealogia existente no Facebook, a propósito do significado de «assistente» nos registos paroquiais, alguém afirmou: "O termo «assistente» significa, normalmente, «residente temporário»".
Embora esta questão já tenha sido discutida em diversos grupos e fóruns de Genealogia, onde algumas vezes intervim para procurar esclarecer o significado da palavra, não deixei de voltar a fazê-lo no dito grupo do Facebook, comentando a afirmação acima transcrita do seguinte modo: - "«Assistente» não é o mesmo que residente temporário. É simplesmente indicativo da paróquia onde o indivíduo assistia à missa. Podia ser assistente nessa paróquia toda uma vida, ou não." Gerou-se depois uma cordial discussão sobre o assunto, na qual colocaram em causa o que afirmei, obrigando-me a esclarecer de novo que o comentário por mim feito inicialmente incidia sobre a perspectiva do pároco, visto que a pergunta inicial tinha a ver com os registos paroquiais, e que «assistente» poderia também significar «morador». Inclusivamente partilhei uma captura de ecrã do incontornável dicionário de Bluteau, de 1789, onde ambos os significados são contemplados, com predominância para o significado de "morador", pois só se menciona a questão da missa no significado do verbo "assistir". Porém, e tal como já tinha sucedido no passado em outros grupos e fóruns de Genealogia a discussão evoluiu no sentido de se tentar demonstrar que a expressão «assistente» era sobretudo usada quando se pretendia aludir à residência temporária num certo local. Foi até feito o paralelismo com o conceito de «pousar» - presente em expressões como "assistente nas pousadas de" fulano - sendo que "pousar" também não era necessariamente sinónimo de um carácter temporário. Em muitos casos era-o, sim, mas o que a expressão «pousar» nos diz é que a morada de casas onde se "pousava" não era sua e, como é óbvio, deduz-se que a residência numa casa que não é nossa é uma residência temporária, embora conheça casos de "assistentes nas pousadas de" fulano que "assistiram" ali até morrer anos depois! Mesmo quando no documento se lê "assistente em casa de" sicrano isso não significa à partida uma residência temporária. Estou a lembrar-me do caso de dois irmãos que estudei e que viveram em finais do século XVII, os quais ficaram ambos viúvos com poucos anos de diferença: ele abandonou a sua quinta, que ficou aos cuidados de caseiros, e foi viver para o solar da irmã viúva, porque era situado numa cidade e mais cómodo. Os documentos que lhe aludem como "assistente em casa" da irmã indicam-nos que a casa não era dele, mas a verdade é que ele ali morou mais de quinze anos. É bem possível que quando para ali foi viver a ideia já fosse a de amparar a irmã na viuvez e na velhice, sendo também ele amparado na sua velhice. Em suma, o carácter temporário não só não está contido intrinsecamente no significado de "pousar" - muito menos em "assistir" - como em alguns casos nem sequer se confirma tal dedução por outros documentos. Há que pesquisar mais para se tirar conclusões seguras. Seja como for, quem ler todos os comentários do tópico em causa no tal grupo do Facebook poderá ficar com a ideia que «assistente» era mesmo quase sempre um residente temporário, por oposição a «morador». É que foram citados exemplos, foram invocadas longas experiências de pesquisa, milhares de registos paroquiais lidos; tudo para se tentar demonstrar tal significado. Houve até quem dissesse que uma coisa era o conhecimento académico e outra coisa era a prática. Não nego a minha formação académica, mas durante essa formação nada me foi ensinado sobre Genealogia. Na Universidade recebi as bases históricas, mas o que aprendi sobre Genealogia foi somente à custa da pesquisa, isto é, da prática - uma prática baseada na teoria. Ora, a formação académica que tive ensinou-me a ser cauteloso na interpretação das fontes e, quando não sabemos o verdadeiro significado de uma expressão à época, devemos citar "ipsis verbis" deixando para outros mais sabedores (que até poderemos vir a ser nós próprios anos mais tarde, com maior bagagem acumulada) a interpretação desse trecho do documento. Aparentemente, há muito quem pense de outra forma e, sem mais, resolva transformar "assistente" em "residente temporário", mesmo sem ter provas disso. Julgo, pois, ser oportuno esclarecer o seguinte: 1. Entre os vários significados possíveis do dicionário de Bluteau para a palavra «assistente», nenhum deles alude ou sequer sugere a ideia de um carácter temporário. Por conseguinte, é incorrecto presumir "a priori" algo que não é dito nos documentos contendo a palavra «assistente», com base num mero convencimento pessoal. A experiência, neste caso, pode servir apenas para replicar sucessivamente um pré-juízo incorrecto anteriormente feito. E como sabiamente costuma referir certa pessoa que conheço: "para dizer asneiras bastam os profissionais". 2. Não competia aos párocos atestar a eventual circunstância da residência temporária. Escrivães judiciais e tabeliães também não tinham de o fazer em praticamente nenhum caso. Há situações em que se usa a expressão "ora", que significa "agora", mas esta tanto pode surgir juntamente com o «assistente» como com o «morador» e em nenhum caso significa necessariamente residência temporária, mas sim que determinado indivíduo passou a residir há pouco tempo no local indicado. Esta expressão "ora" era usada, pois, sobretudo para esclarecer que certos documentos sobre o passado desse indivíduo poderiam ter de ser procurados no local de anterior residência. Em nenhum caso o "ora morador" ou o "ora assistente" - que são sinónimos - significa necessariamente residência temporária, pois quem redigia o documento não tinha de saber (nem isso interessava para o caso) se o indivíduo tencionava residir no novo local apenas um mês, um ano, ou até ao fim da vida. Essa decisão era de carácter pessoal, não era escrutinável e, por conseguinte, não tinha de transparecer em documentos paroquiais ou judiciais, pois às autoridades civis e religiosas não cabia condicionar o futuro local de residência dos indivíduos. Quantas vezes alguém mencionado como "ora assistente" ou "ora morador" não ficava ali a viver até ao fim da vida! O confronto com outros documentos permite concluí-lo. 3. E se dúvidas ainda houver sobre esta questão aproveito para dar o exemplo do livro de baptismos de Santa Marinha de Vila Nova de Gaia para os anos de 1801 a 1807, onde a partir de cerca de 1804 a expressão «assistente» passa a surgir em praticamente um terço de todos os assentos. Significa isto então que, de repente, cerca de um terço dos casais a ter filhos em Vila Nova de Gaia informaram previamente o pároco de estarem na paróquia apenas a título temporário e este, de moto próprio, achou que deveria fazer eco desse carácter temporário nos assentos?!? Como é óbvio, esta possível explicação é completamente absurda. Aliás, basta ver pela imagem partilhada que, a um casal dos mais ilustres da vila (dos pouquíssimos em que neste livro se dá o tratamento de "Dona" à mulher), o pároco menciona-os como «assistentes» em certa quinta da família, quinta essa cuja designação coincide com o próprio apelido de um dos avós! E não, esse casal não vivia noutro sítio estando então na quinta da família a título temporário: cerca de dois anos antes, quando nasceu o primeiro filho, esse casal já vivia exactamente na mesma quinta, altura em que não são sequer mencionados como ali «assistentes»! Como é óbvio se já ali viviam na quinta da família, o serem mencionados como «assistentes» nessa quinta aquando do nascimento do segundo filho significa apenas que ali moravam, como já moravam antes, e que simplesmente mudou o pároco que redigiu o assento, o qual usou de «assistente» como sinónimo de "morador". Complementando a questão, aproveito para dizer o seguinte: no livro que aqui estou a dar como exemplo, o pároco que redigiu o assento da imagem partilhada usa sistematicamente «assistente» quando indica a rua ou a quinta onde os pais da criança moravam; mas quando indica um lugar, sem especificar a rua ou a quinta, então esse pároco não usa a palavra «assistente», dizendo simplesmente "do lugar de...". Significa isto que, à volta de 1804-1806, todas as pessoas que viviam em quintas e em ruas forçosamente estavam lá a título temporário? Abstenho-me sequer de responder, de tão absurda que é a dedução. Aliás, a partir de certa altura, os assentos em Vila Nova de Gaia passam a ser feitos por outro padre e esse até usa «assistente» de modo indistinto, tratando-se de um lugar, de uma rua ou de uma quinta. A única coisa que se mantém, e até aumenta, é uma percentagem muito elevada de «assistentes» mencionados nos assentos paroquiais. Ora, a fiarmo-nos na tese de que «assistente» tendencialmente significa "residente temporário", então seria preciso explicar cabalmente por que razão cerca de 40% dos habitantes com filhos em Vila Nova de Gaia à volta de 1804-1806 passaram a ser residentes temporários, quando vários deles antes não o eram (e alguns comprovadamente continuaram a não sê-lo mais tarde)! Voltemos, pois, à afirmação que me motivou a escrever este esclarecimento: - "O termo «assistente» significa, normalmente, «residente temporário»". Depois de tudo o que aqui expliquei, a única coisa que me resta dizer é: Sim até pode normalmente significar residente temporário se na localidade ou região em causa os havia em quantidade, como trabalhadores agrícolas que se deslocavam em grande número para outra localidade na altura das colheitas, situações de transumância, etc. Porém, neste caso, estamos perante uma mera questão de probabilidades: numa localidade que receba muitos residentes temporários, é óbvio que entre os mencionados como nela "assistentes" muitos tinham de ser residentes temporários! Não é a partir da mera palavra "assistente" que o podemos concluir. Aliás, não por acaso, a palavra «assistente» é por vezes usada em situações que de imediato nos desmentem a hipótese de um carácter temporário, como por exemplo: "assistente na sua quinta de...". Espero, pois, a bem do rigor na pesquisa genealógica, ter desmontado de vez a ideia de que a palavra «assistente» por si só significa «residente temporário». Até pode significar em alguns casos, mas isso só pode ser demonstrado através de outros indícios, e não pelo mero uso da palavra «assistente». |
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