Para quem se dedica a fazer Genealogia – profissional ou não – os registos de baptismo, casamento e óbito constituem a base fundamental das suas pesquisas: fundamental, sim, mas não exclusiva. Como temos vindo a referir em outros textos do nosso blogue (caso deste), existem fontes alternativas que podem ser complemento valioso – e até essencial, não só por darem informações que não existem nos registos paroquiais, mas também, no limite, por serem as únicas disponíveis quando estes registos já desapareceram. Entre as várias fontes alternativas possíveis, incluem-se os documentos produzidos em instituições assistenciais, caso dos hospitais. Se há uma condição que toca a todos nós, hoje como no passado, essa é a doença e – em última instância – a morte. Ora, nos nossos arquivos públicos existem livros de registo de internamentos em hospitais. Através destes livros podemos provar o internamento de determinada pessoa e a sua infausta morte em espaço hospitalar – o que geralmente não é sequer mencionado no respectivo registo paroquial de óbito, sobretudo tratando-se de óbitos anteriores a meados do século XIX. Do mesmo modo como sucede nos registos paroquiais, os livros de registo de internamentos tendem a conter informação óbvia para a finalidade com que eram redigidos: nome do internado, data de entrada e data de saída (por convalescença ou por morte), variando a riqueza informativa adicional. Assim, para além da informação mais óbvia, nestes livros pode encontrar-se: naturalidade, morada, estado (se solteiro, casado ou em viuvez), nome do cônjuge, filiação, actividade profissional, e – por fim – informação sobre a enfermidade e/ou sobre a causa de morte – no caso de ter havido óbito. Curiosamente, por vezes existem registos de reinternamento. Ou seja, podemos ter acesso a novas informações, e até a discrepâncias entre registos, obtendo assim mais dados complementares, bem como um olhar mais amplo sobre a passagem da pessoa em causa pela instituição hospitalar – que, frequentemente, localizava-se em sítio afastado da sua habitual área de residência. De facto, sobre este último ponto, recuperamos uma frase escrita pelo célebre Ricardo Jorge em 1899 – ano em que ajudou a cidade do Porto a debelar um mortífero surto de peste bubónica: "O obituário dos forasteiros que vêm morrer à cidade só pode determinar-se quando o óbito se dá no hospital". (JORGE, Ricardo – Demografia e higiene da cidade do Porto, Porto, 1899, p. 431) Bacteriologista director do Posto de Saúde Municipal da cidade do Porto, Ricardo Jorge expressava assim as dificuldades que os médicos tinham para conhecer a morbilidade e a mortalidade das populações migrantes, que, embora fossem fundamentais para a economia, eram um «elemento de risco» enquanto potenciais propagadores de enfermidades, devido à sua mobilidade. Pondo de parte as minudências relacionadas com a salubridade pública, o que importa aqui salientar é a riqueza informativa da documentação produzida em contexto hospitalar, que pode ser um complemento valioso para a pesquisa genealógica e dar-nos informação sobre a população estrangeira ou deslocada, informação essa que dificilmente se encontra em outras fontes. É forçoso notar que, até finais do século XIX, a assistência médica era geralmente prestada em casa do próprio doente, por médicos, e o apoio da família era fundamental, para prestar os cuidados prescritos pelo clínico e para tratar do aviamento de receitas nas boticas. Por conseguinte, os hospitais estavam vocacionados sobretudo para assistir todos os que não tinham esse suporte familiar, com os deslocados logo à cabeça – fossem peregrinos, almocreves, ou indivíduos que, por alguma outra qualquer razão, estavam longe do seu domicílio quando ficavam enfermos. Como é óbvio, isto incluía também vários migrantes e militares, sobretudo quando não constituíam família nos locais para onde se deslocavam. Quanto aos migrantes, tratando-se de uma população que se encontrava geralmente afastada do seu entorno familiar ou social, estava simultaneamente longe dos respectivos laços de entreajuda e / ou dos mecanismos de solidariedade familiar. Contando apenas com a sua força de trabalho, muitas vezes a troco de uma baixa remuneração, eram um grupo particularmente propenso a cair na pobreza extrema, em caso de doença mais grave ou por terem sido vítimas de um acidente de trabalho. Aí «entrava em cena» a Misericórdia local, que os acolhia no seu hospital – quase sempre o único existente, tratando-se de localidades mais pequenas. Um exemplo muito comum nos livros de internamento dos hospitais são os registos de trabalhadores rurais vindos de Espanha, particularmente dos recorrentes «galegos», que se deslocavam muitas vezes em grupo para território português, percorrendo um itinerário definido pela sazonalidade dos calendários agrícolas regionais ou por empreitadas de obras de construção, por exemplo. Hospital de Santo António em meados do século XIX (fotografia de M. J. S. Ferreira, Biblioteca Nacional do Brasil). Tratava-se do segundo edifício hospitalar da Misericórdia do Porto (à qual ainda se encontra parcialmente ligado, apesar de, desde 1974, pertencer à rede hospitalar do Serviço Nacional de Saúde, como um dos hospitais gerais da cidade). O primitivo edifício hospitalar da Misericórdia ficava, desde o século XVI, no centro da cidade amuralhada, sendo conhecido como o Hospital de D. Lopo. No caso dos militares, para eles havia em Portugal alguns hospitais específicos, embora tenham sido poucos e de criação relativamente tardia aqueles hospitais militares de carácter não temporário que fossem mais do que meras enfermarias associadas a quartéis: cingiam-se a cidades maiores, ou a «praças de guerra» (ou seja, a núcleos urbanos fortificados de fronteira). Até ao início do século XX, na maior parte dos casos os hospitais militares portugueses foram meras enfermarias improvisadas em certos edifícios, durante conflitos bélicos. Eram os chamados «hospitais de sangue». Os registos destes, se subsistiram, estarão no Arquivo Histórico Militar. Porém, há também registos de militares internados em hospitais de carácter civil, em épocas de conflito, o que se explica pelas seguintes razões principais: - face à «aproximação» da guerra, as populações locais tendiam a fugir e eram os militares que se instalavam em grande número nas localidades palco do conflito; - muitos militares necessitavam de auxílio médico devido a ferimentos, debilidade física e a doenças directa ou indirectamente associadas à actividade bélica (a sarna ou a sífilis, por exemplo). Enquanto grupo também marcado pela forte mobilidade, os militares têm particular visibilidade nos registos hospitalares, com a particularidade de estes nos fornecerem informações sobre a proveniência, em vários casos bastante longínqua. Para o período da Guerra Civil de 1832 a 1834, por exemplo, encontram-se registos hospitalares vários de indivíduos naturais das ilhas dos Açores e da Madeira, para além de estrangeiros. Mas voltemos aos hospitais ditos «civis», que até ao século XX estavam maioritariamente na esfera das Misericórdias, embora alguns funcionassem sob a tutela de outras irmandades e ordens terceiras (como ainda hoje sucede no Porto). Em outros tempos, em alturas de paz, a esmagadora maioria dos internados nestes hospitais eram, não só os já referidos deslocados, mas também – e em muito maior número – as pessoas de muito fracos recursos económicos, que não podiam pagar a assistência médica ao domicílio, ou os medicamentos. Por conseguinte, fora do âmbito militar, os hospitais do passado eram, sobretudo, um mundo de pobres e mendigos, aos quais, em caso de necessidade extrema ou doença, eram prestados cuidados de acordo com os preceitos das 14 Obras de Misericórdia (7 espirituais e 7 corporais). Em suma, quem tinha dinheiro, chamava o "físico" (médico) a casa, comprava ou mandava comprar os remédios na botica e, sobretudo, podia assegurar a alimentação preceituada – pois, até finais do século XIX, a alimentação ocupava uma componente forte da terapêutica recomendada pelos médicos. Daí que o ter de dar entrada num hospital revestia-se de uma carga social pejorativa forte: de acordo com alguns estudiosos desta realidade, evitar o recurso ao hospital era mesmo quase uma questão de honra. A repugnância e a desqualificação social afastavam dos hospitais todos os que podiam suportar os custos médicos, nem que, para tal, tivessem de se socorrer das economias de parentes. Esporadicamente, davam entrada no hospital doentes com meios para pagar as despesas, pois algumas «pessoas em jornada» até tinham meios pecuniários. Outras excepções eram casos muito específicos e, portanto, só confirmavam a regra. Segue-se um exemplo. Embora seja hoje reconhecido como um dos mais talentosos arquitectos que trabalhou em Portugal no século XVIII, Nicolau Nasoni era de condição económica suficientemente modesta para considerar tolerável a admissão ao hospital que a Irmandade dos Clérigos havia instituído no Porto para "clérigos pobres", prerrogativa que depois estendera a algumas pessoas seculares. É claro que o hospital desta irmandade, encaixado entre a igreja e a famosa torre, não era assim tão desconsiderado socialmente, pois, na época, não havia padres verdadeiramente pobres. Aliás, em outros tempos, para se ser sacerdote era condição essencial o ter alguns rendimentos de propriedades, ou então uma família abastada – o que, logo à partida, permitia pagar os estudos religiosos. Portanto, "clérigo pobre" era uma força de expressão que hoje dificilmente compreendemos: era ser um clérigo menos afortunado – por exemplo, sem amparo familiar no local onde vivia – embora não necessariamente desprovido, por completo, de meios pecuniários. A existência de um hospital destinado a clérigos, no Porto setecentista, mostra bem como a realidade hospitalar em Portugal era então bem diferente do paradigma actual. No caso do hospital da Irmandade dos Clérigos, tratava-se mais de um lar de cuidados continuados para sacerdotes idosos, doentes e sem amparo familiar, do que propriamente de um hospital, segundo o conceito actual - muito mais abrangente em termos de utentes, mas também mais específico em termos de medicalização. Tal conceito começou a formar-se a partir da segunda metade do século XIX, especialmente com o desenvolvimento da ciência médica e da prática clínica. A evolução no planeamento da arquitectura hospitalar foi um dos aspectos que mereceu especial atenção, de forma a dar aos doentes condições de salubridade que estes não teriam facilmente em casa, ou seja, boas condições de ventilação e iluminação. Assim, o ir para o hospital, mesmo que perdendo-se o amparo familiar, começou a ser encarado como benéfico em termos médicos. Por outro lado, há que ter em conta que, sobretudo a partir do século XIX, começam a surgir em Portugal hospitais especializados, onde o internamento não era feito devido a enfermidades graves que poderiam levar à morte. Referimo-nos, por exemplo, ao Hospital de Runa, para militares simultaneamente pobres e inválidos, ou aos hospitais psiquiátricos de Rilhafoles (em Lisboa, posterior Hospital Miguel Bombarda) e do Conde de Ferreira (no Porto). Nestes casos, os hospitais aproximavam-se do conceito de "asilo". Ainda assim, a documentação produzida é tão ou mais importante que a dos hospitais "gerais" das diversas localidades, que, como já dissemos, eram quase sempre geridos pelas Misericórdias. Não podemos ainda esquecer os hospitais termais, como o das Caldas da Rainha - o mais antigo em Portugal. Estes confundem-se com os estabelecimentos termais e, não só tendiam a ter muito menor percentagem de registos de saída de internamento por morte, como os utentes não eram necessariamente os mais pobres dos pobres, ou os deslocados. Muito pelo contrário. Em conclusão, quem eram, de onde vinham, onde se fixavam e qual o perfil socioprofissional dos internados (quer convalescessem ou falecessem), são alguns dos aspectos que podem ser melhor aclarados através desta importante fonte histórica que são os fundos arquivísticos hospitalares. Contudo, com este texto, de modo algum pretendemos sugerir que tais fundos só interessam à Genealogia no respeitante a antepassados deslocados (militares, migrantes, etc.), ou aos que fossem muito pobres. Tenha-se em mente toda a documentação paralela aos registos de hospitalização, ou seja, documentos de teor administrativo ou similar, relacionados com o próprio financiamento dos hospitais: neste caso, inversamente, surge representada uma certa elite. Lembramos aqueles que constavam da lista de irmãos de uma Misericórdia, por exemplo, ou até do «pessoal» que trabalhava para a instituição: médicos, cirurgiões, boticários, fornecedores de alimentos e de sanguessugas, etc. Por fim, uma curiosidade, em jeito de dica: por vezes, a menção da causa de morte num registo hospitalar não coincide com a do assento de óbito paroquial referente ao mesmo indivíduo (o que não quer dizer que a menção no registo hospitalar tenha de ser sempre mais detalhada ou fiável). Portanto, pode haver interesse em consultar os registos hospitalares mesmo quando achamos que temos já suficiente informação sobre a morte de determinado antepassado. Texto de Manuel Couto e Francisco Queiroz
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Dezembro 2021
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