Vários dos nossos antepassados podem ter sido alimentados na primeira infância por amas de leite, com as quais não eram minimamente aparentados. Embora os seus nomes não surjam na nossa árvore genealógica, estas amas foram, pois, importantes para a história da família. Por outro lado, algumas das nossas antepassadas podem até ter sido, elas próprias, amas de leite: quer pontualmente, quer sistematicamente e quase como se fosse uma profissão. Neste texto desvendamos um pouco da história das amas de leite, sob o olhar da Genealogia. Algumas amas de leite de príncipes franceses, em detalhes de gravuras do espólio da BNF: a ama de leite de Luís, Duque da Borgonha (1682-1711); Luís, Duque da Bretanha (1707-1712), filho do precedente, ao colo da sua ama de leite; Napoleão II, o Rei de Roma (1811-1832), filho de Napoleão Bonaparte, também ao colo da sua ama de leite. O papel das amas de leite era de tal modo importante que, no caso daquelas a quem fora incumbida a missão de amamentar grandes figuras da realeza europeia, não raramente elas privavam com toda a família real dentro do palácio e eram representadas nos retratos dessas figuras enquanto príncipes. Ainda assim, quase sempre o seu nome era formalmente omitido, como se o seu trabalho fosse uma honraria que lhes era concedida. Na primeira destas três gravuras, a legenda (não reproduzida) alude mesmo ao "ofício glorioso" de cuidar da infância de tão ilustre pessoa, como era o caso do Duque da Borgonha, neto do célebre "Rei Sol" - Luís XIV de França. As amas de leite são um ofício quase tão antigo como as sociedades humanas, na medida em que desde muito cedo houve a necessidade de amamentar filhos alheios, quer por impedimento biológico ou por questões sociais, entre outras possíveis razões. Se considerarmos as circunstâncias em que era desempenhado este ofício, podemos dividi-lo em: 1) amas de leite domiciliárias ou particulares; 2) amas de leite externas. As primeiras eram contratadas como criadas para trabalharem na casa de uma família com posses, onde exerciam a tarefa específica de amamentar e cuidar de crianças, por vezes também como amas secas, ou seja, continuando a cuidar dessas crianças já numa idade em que não eram amamentadas. Podiam também ser contratadas por uma instituição, como uma Câmara Municipal ou uma Misericórdia, para amamentar crianças expostas à caridade pública. As segundas eram, por norma, mulheres que viviam no campo e que estabeleciam uma espécie de contrato de criação com uma família de posses ou com uma instituição assistencial, ficando obrigadas a acolher o bebé. Eram responsáveis pela sua criação até cerca dos dois anos de idade, altura em que a criança regressava ao seio da família biológica ou à instituição. O tema das amas de leite externas é recorrente na arte europeia, desde, pelo menos, o século XVI. O primeiro exemplo é precisamente do século XVI e do pintor flamengo Maerten van Cleve. Trata-se de um detalhe da pintura "A visita à ama" (Musée des Beaux Arts, Orléans), podendo ver-se um casal de cortesãos em casa da ama de leite, estando a dama com o filho, junto à ama, e ele a pagar o respectivo serviço ao homem posicionado do lado direito. O segundo exemplo, de meados do século XVIII, é um detalhe da gravura "As despedidas à ama", de De Launay, com base em quadro de E. Aubry. Dedicada à Condessa de Merle, embaixadora do Rei de França em Portugal, a gravura mostra o momento em que a criança abandona a casa da ama, com quem, naturalmente, criara uma ligação afectiva, mostrando não querer separar-se da ama, apesar de estar já nos braços da mãe. Pelo modo como as figuras se encontram vestidas, percebe-se uma clara diferenciação social entre a ama e a dama que lhe confiara o filho. O terceiro exemplo é o quadro de Silvestro Lega intitulado "A visita à ama", de cerca de 1870 (Palácio Pitti, Florença). Quer as amas de leite domiciliárias ou particulares, quer as amas de leite externas tendiam a ser oriundas de zonas rurais. Porém, as primeiras geralmente mudavam-se para casas de fidalgos ou burgueses endinheirados. As segundas continuavam a residir no campo, por vezes com condições de habitabilidade algo precárias. Não por acaso, a mortalidade infantil tendia a ser mais alta entre os bebés alimentados por amas externas. Aliás, a opção pelas amas de leite externas foi mais comum até ao século XVIII, sobretudo em França. Na centúria de Oitocentos, e muito devido à influência britânica, a tendência inverteu-se a favor da contratação preferencial de amas de leite particulares. Estávamos já no Romantismo e a privacidade no contexto familiar ganhara mais importância. Esta mudança de tendência também derivou do exemplo dado pelas casas reais. A rainha Vitória de Inglaterra contratou amas de leite para os seus filhos, uma das quais - Mary Ann Brough, que amamentou o príncipe Edward - ficou célebre por ter, posteriormente, assassinado os seus seis filhos. Em Espanha, o rei Fernando VII, ao escolher uma ama de leite da região cantábrica de Vale de Pas para amamentar a sua filha e sucessora, Isabel II, criou em Espanha a moda da contratação das "amas pasiegas". Assim, não é de todo surpreendente que, no século XIX, a contratação de amas de leite particulares se tenha tornado uma marca de status social. Três exemplos de amas de leite oriundas de zonas rurais, representadas com os trajes tradicionais das regiões de proveniência: Francisca Ramón González (ama da filha do rei Fernando VII de Espanha, quadro de c. 1830 por Vicente López Portaña, Palácio Real de Madrid); a ama de Manuel II de Portugal, com o príncipe ao colo; uma ama passeando com a sua patroa na estância balnear de Monte Carlo, no ano de 1905 (espólio da BNF). É claro que a história das amas de leite é mais complexa do que possa parecer à primeira vista. Basta referir que cada território tinha particularidades próprias no que a esse ofício dizia respeito. Por vezes, ser ama de leite nem sequer era um ofício remunerado, mas um trabalho forçado. No continente americano, por exemplo, foi comum a amamentação de bebés da elite branca por escravas negras, tendo este fenómeno dado origem ao conceito de “mãe negra” - uma das imagens mais marcantes da escravidão doméstica sentimentalizada. O tema das amas de leite em postais antigos. Por outro lado, e voltando ao continente europeu, no caso das amas de leite remuneradas, a sua disponibilidade para serem contratadas podia ocultar realidades difíceis. Por vezes, ofereciam-se para tal serviço por terem acabado de deixar um filho recém-nascido na roda dos expostos, directamente ou através de terceira pessoa. Outras vezes, eram mães cujos filhos haviam falecido durante o parto ou muito pouco tempo depois - o que era relativamente comum em outros tempos, atendendo à alta taxa de mortalidade nos primeiros meses de vida. Em outros casos, as amas de leite não expunham os seus filhos à caridade pública, nem tinham a infelicidade de os perder nos primeiros meses de vida e simplesmente aceitavam outras crianças para amamentar se tivessem leite suficiente para tal. Em todos estes casos, era transversal a frágil situação económica das amas: a disponibilidade de leite para amamentar filhos de outras mulheres era um activo que tinha de ser aproveitado, quando o orçamento familiar era escasso. Por isso, e numa época em que vulgarmente as mulheres tinham muito filhos, com intervalos não muito superiores a um ano entre cada parto, ser ama de leite era entendido por várias mulheres quase como uma espécie de profissão, a qual poderia ser exercida ao longo de 10, 15 ou mais anos, podendo ser ainda mais duradoura se considerarmos que várias continuariam a exercer como amas secas já depois de terem tido o seu último filho. No caso das amas externas que simultaneamente amamentavam o próprio filho e eram também pagas para dar o seu leite ao filho de outra pessoa, esta situação propiciava alguma tensão. Quem contratava tinha de ser vigilante face ao comportamento da ama, que, naturalmente, tendia a incidir a atenção no seu filho, preterindo a criança deixada sob os seus cuidados. Essas crianças amamentadas numa mesma época pela mesma mulher, mas sem terem qualquer relação de consanguinidade entre si, designavam-se “irmãos colaços” ou “irmãos de leite”. Em alguns casos, se a ama de leite passava a ama seca, nomeadamente por trabalhar como criada em casa dos pais da criança que amamentara, os irmãos colaços poderiam até criar uma certa cumplicidade entre si, mesmo sendo de díspar condição social: cresciam juntos e brincavam juntos. Mesmo assim, as árvores genealógicas omitem estas ligações, que eram sobretudo afectivas. Exemplos de anúncios a amas de leite: o primeiro do "Diário de Lisboa" de 12 de Março de 1828 e o segundo de "A Persuasão" de 14 de Outubro de 1891. A partir do século XIX, a contratação das amas de leite passou cada vez mais pela publicação de anúncios em jornais, embora tivesse permanecido o tradicional sistema das recomendações: feitas por familiares e amigos, pelas parteiras, ou por médicos (nomeadamente os ligados a hospitais ou às rodas dos expostos). Em cidades de maior dimensão, no século XIX existiram mesmo agências de amas, onde os interessados poderiam contratar as mulheres que ali se dirigiam para oferecer os seus serviços. Nestas agências de amas, os clientes examinavam o aspecto físico das mulheres disponíveis para contratação - procedimento que, sob o olhar actual, pode ser considerado bizarro, mas que era uma forma de garantir a qualidade do serviço. Era mais facilmente seleccionada uma mulher com aspecto sadio, robusto e jovem (mas não demasiado jovem) e que parecesse ter muito leite. As candidatas a amas levavam consigo os seus próprios filhos em amamentação, pois o exame ao estado de saúde destes bebés ajudava a aferir a qualidade do leite da mãe. Em alguns casos, fossem contratadas a partir de agências ou por outros meios, estas mulheres deixavam logo depois o seu bebé entregue a uma parente ou vizinha que tivesse leite. De facto, aquilo que teriam de pagar por tal serviço era compensado pelo valor bastante superior que ganhariam como amas de leite em casa de fidalgos ou burgueses endinheirados. Artigo sobre as amas em Madrid em finais do século XIX e sobre a escolha da ama real de Espanha ("Diário de Annuncios", 5 de Julho de 1886). Três ilustrações referentes às agências de amas em França: entrada da Agência da Direcção Geral das Amas, em Paris (litografia editada em Londres no ano de 1822); interior de uma agência de amas, vendo-se em primeiro plano um médico examinando uma das amas (pintura de José Frappa, finais do século XIX, Musée Assistance Publique/Hôpitaux de Paris); e uma das agências de amas que existiram em Paris na viragem para o século XX, a de G. Pommereuil, em cujas montras lia-se que as amas eram provenientes do campo e poderiam ser examinadas no local (postal ilustrado). Em suma, para a Genealogia e, sobretudo, para a História da Família, a questão das amas é particularmente interessante. E na sua árvore genealógica, haverá alguma mulher que se tenha dedicado a este ofício, com o propósito de obter um rendimento complementar para o orçamento familiar? Inversamente, entre os seus antepassados haverá quem tenha optado por contratar uma ama de leite, de modo a não descurar o que eram então as exigências sociais para os elementos femininos dos estratos mais favorecidos da sociedade? Quem sabe se alguma mulher da sua família não terá até amamentado um rei, um artista, ou uma personalidade marcante... Texto de Joana Medeiros Couto e Francisco Queiroz
0 Comments
|
Genealogia sem segredos
Para uma Genealogia mais rigorosa, mais transparente e mais acessível a todos. Histórico
Dezembro 2021
Categorias
|